Narciso — Final
Só alguns anos depois do acontecimento no rio eu soube da história de L’Inconnue de la Seine. Também chamada de A Mona Lisa Submersa, ela foi uma jovem francesa que morreu afogada e foi encontrada boiando no rio Sena, entre os anos de 1880 e 1890. Descoberto próximo ao Louvre, o corpo foi levado ao necrotério e a história conta que o funcionário ficou tão encantado com a beleza da jovem que fez uma máscara mortuária e desde então centenas e mais centenas de cópias desse mesmo rosto foram feitas e espalhadas ao redor do mundo, transformando-se nas bonecas usadas para treinar técnicas de ressuscitação.
Desde sua morte, a jovem francesa é beijada por milhares de pessoas ao redor do mundo, o peito pressionado, numa tentativa inútil de trazê-la de volta à vida. Assim como o funcionário do necrotério deve ter feito, colando seus lábios nos dela a fim de ressuscitar algo tão belo.
É um dos rostos mais conhecidos do mundo, mas ninguém faz ideia de quem seja essa mulher. Na época ninguém apareceu para reclamar seu corpo, não havia familiares, sua história começou e terminou em sua morte no rio. Nunca saberemos se era uma vendedora de frutas, uma costureira ou apenas alguém que ainda não sabia o que fazer com sua vida. Se ela voltasse e nos contasse, talvez essa seja ainda a nossa esperança secreta.
L’Inconnue de la Seine, “a desconhecida do Sena”, é um eco eterno e atemporal de todos nós.
Naquela tarde após o almoço, quando fui visitar Pai Mo, não havia pássaros no céu, um céu de um azul tão profundo que doía os olhos, ofuscava tudo com sua imensidão. Ele estava sentado numa cadeira de balanço, um cachimbo na mão, seus olhos apertados como se estivessem procurando algo ao longe, que só ele mesmo podia ver.
Naquele dia, quando eu lhe perguntei o que realmente tinha acontecido com aquelas pessoas, ele soltou um longo suspiro junto da fumaça pastosa do cachimbo. Parecia a alma dele saindo pela boca e nariz. Ele demorou um tempo a responder, como se estivesse organizando os pensamentos, tirando a poeira das memórias, ordenando arquivos mentais por ordem cronológica.
A polícia havia dito que os corpos estavam flutuando no ria havia já um dia. Os moradores murmuravam da estranheza de ninguém ter se dado conta de uma procissão de cadáveres no único rio da cidade. As autópsias concluíram que todos foram envenenados com altas doses de arsênico, e segundo o Pai Mo, de forma espontânea. O rio levara os excrementos e vômitos expelidos por todos após a ingestão da toxina. Também foram encontrados indícios de líquidos internos na margem onde todos se encontraram, junto com suas roupas, relógios, jóias etc. Pai Mo, que estava presente, contou aos policiais que todos ingeriram o veneno e em seguida se jogaram no rio.
Casais, pais e filhos, amigos, todos nus e de mãos dadas, com o corpo já sofrendo os efeitos do veneno, se jogavam no rio para formar a macabra procissão que durou um dia.
Chamada agora de “Resusci Anne”, ou “Resusci Tânia”, ou Boneca de RCP, l’Inconnue de la Seine está em todos os treinamentos de Respiração Cardiopulmonar, agora também em sua versão masculina. Desde 1960, é o manequim preferido dos profissionais de saúde. Possui uma anatomia realista para treinamentos de qualidade, incluindo um sistema de ventilação apropriado para o MTM (a respiração boca a boca).
A mulher que eu vi no rio, com sua pele pálida como papel, veias azuis em algumas partes de seu corpo, o rosto dela me marcou muito naquele dia e quando vi pela primeira vez uma boneca de RCP, não pude evitar a comparação. Quando coloquei meus lábios nos lábios artificiais da boneca, não pude dissociar esse momento daquele, como se eu estivesse de fato querendo trazer de volta não só aquela mulher, mas todos os que boiavam, corpos sem vida, para me contar suas histórias.
No momento em que eu encostei meus lábios na reencarnação de poliuretano celular da l’Inconnue de la Seine, eu confesso que tive uma ereção.
Pai Mo levantou da cadeira, deixando o cachimbo já apagando numa pequena mesa ao lado e foi entrando na casa, me pedindo para segui-lo. Uma casa pequena e de poucos móveis, daqueles móveis antigos e pesados e que duram uma vida. De uma estante empoeirada, da última gaveta, ele tirou algo e me disse para sentar. Sentei encostando os braços numa mesa que provavelmente ele usava para fazer suas refeições. Se aproximou e depositou sobre a mesa uma caixa de madeira marrom e descascando, com sinais de mofo, do tamanho de uma caixa de sapatos. Quando ele a abriu, um cheiro adocicado mas sufocante preencheu o espaço. Deixando a tampa aberta, ele aproximou a caixa de mim e eu me inclinei para olhar seu conteúdo.
A caixa guardava apenas um objeto, um espelho com a face virada para baixo, desses espelhos de mão que costumamos ver com mulheres em fotografias e pinturas, delas se contemplando.
Quando minha mão se aproximou do espelho, a voz de Pai Mo cortou o tenso silêncio.
“Esse não é um espelho comum.”
Sua dentadura parecia um número maior, então sua voz chacoalhava dentro de sua boca, reverberando pelas paredes úmidas de sua cavidade bucal.
“Foi esse espelho que o pessoal do rio olhou antes de sua conexão.”
Pai Mo disse à polícia que aquilo não havia sido um suicídio e sim uma conexão, um retorno às origens. As pessoas que se jogaram no rio só queriam voltar a ser Um com a Natureza. A razão de usar veneno, ele enrolou, destilou uma enorme verborragia sem sentido, que os policiais não engoliram. Ele relatou friamente e sem remorsos como os pais deram na boca dos filhos o “néctar para a conexão”.
“E o que eles viram aqui?”, eu perguntei apontando para o espelho e nesse momento Pai Mo soltou mais um longo suspiro, que agora eu acreditava ser seu uso para pausas dramáticas.
“Eles viram a verdade.”
Hoje, como já falei, estou aqui, diante de um espelho com uma lâmina próxima ao pescoço. Sim, eu olhei para aquele espelho na casa do Pai Mo. A verdade que ele falou, bem, ele me disse que cada um via a própria verdade e eu achei isso demasiadamente subjetivo. Como uma coisa pode ser verdade se ela está aberta a diversas interpretações? Como pode ser verdade se cada pessoa que olha para ela vê alguma coisa diferente?
Sim, eu olhei para o espelho, mas não vi verdade nenhuma e estou agora diante desse espelho no banheiro do meu apartamento com uma lâmina na mão na altura de meu pescoço porque estou me barbeando. Só isso.
Talvez esse espelho sim, esse diante de mim, mostre a verdade. Meu rosto pisado pelo tempo, suas pegadas cada vez mais profundas. Minha pele comprovando a Lei da Gravidade. Minha verdade pode ser essa, ou não. O espelho reflete com detalhes exaustivos a minha aparência. Ele replica o que eu sou em meu exterior. Ele não pode copiar minha fala ou meus pensamentos. A verdade é que essa imagem diante de mim não é exatamente o que eu sou.
O reflexo de uma imagem, no espelho, nas águas inquietas de um rio. Uma máscara mortuária. Narciso olhando para o espelho e se convencendo que nada é importante além dele, que tudo gira ao seu redor e que as coisas só existem porque ele as contempla.
Sou Narciso ou sou o lago?
O espelho. O rio. A máscara mortuária.
Pai Mo disse que todos os que olharam para o espelho viram a sua verdade. E depois disso todos tomaram a decisão de voltar à sua forma original. Todos voltamos ao pó, segundo Pai Mo. Todos retornamos ao nosso estado de transformação constante como parte da natureza. E existem inúmeras formas de fazer isso. Alguns esperam a morte e são maquiados e vestidos e colocados em caixões confortáveis e enterrados ou cremados para que sua constituição se fragmente até voltar a fazer parte do Todo.
Outros podem apressar esse processo. Como as pessoas no rio.
O que eles viram no espelho? O que esses Narcisos viram no seu reflexo no lago?
Quando questionado, Pai Mo fala que não seguiu os outros porque sua missão é levar a verdade para todos. Seu sacrifício é permanecer nessa forma de carne para levar a Revelação ao maior número de pessoas possível. A polícia, claro, não acreditou em nada disso.
A Verdade, ou verdades, isso é mais complicado do que parece, a Verdade que eles viram, segundo Pai Mo, se resume a uma revelação pessoal. O que a pessoa vê, ela vê sozinha, a alegria que ela sente, ela sente só, ela também sofre só. O que acontece na mirada do espelho, acontece só com aquela pessoa. A realidade que o espelho distorce é uma realidade única, essa realidade pessoal onde não há mais espaço para ninguém.
Ego, egoísmo, chame do que for. Meu reflexo no lago, ondulante e imperfeito. Meu reflexo no espelho, a realidade duplicada com o peso dos detalhes. A francesa no rio Sena, seu egoísmo em tirar a própria vida ou seu direito inalienável de dar a si mesma uma conclusão agradável? Todos os corpos flutuando no rio, destituídos de suas crenças, entregues à Natureza que os acolheu sem restrições, sem preconceitos, como uma mãe.
O caso, o resumo disso tudo é um e é simples. É por isso que não entendemos completamente Narciso, ou l’Inconnue de la Seine, ou Pai Mo, que também olhou para o espelho, ou os mortos flutuando no rio. Porque tudo aquilo que nos reflete nos mostra uma realidade pessoal e intransferível. Você, você mesmo que está me lendo, pode ser um espelho para mim e para qualquer outra pessoa. Você pode me refletir e nem se dá conta disso.
Todos vemos algo diferente, mesmo que estejamos olhando para a mesma coisa.
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